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sábado, 3 de novembro de 2012

Rossio... vale de lágrimas!


A Isabel e o Rui chegaram animados. Com um sorriso rasgado e um cumprimento caloroso, receberam uma flor. O trio havia-se juntado de novo. Estava, agora, a admirar a paisagem acabado que era de chegar de um repasto apressado por ali perto. Do cimo de um espaço aberto do Palácio Burnay (ISCSP). Com vista para o Tejo. A Torre de Belém(*) por perto.

Torre de Belém


Ponte sobre o Tejo
Padrão dos Descobrimentos

O Padrão dos Descobrimentos(**). Mais ao longe a Ponte sobre o Tejo, hoje Ponte 25 de Abril, mas que já fora Ponte Salazar(***). 
É curioso, na capital perde-se aquele encanto misterioso do fascínio criado pela fantasia, inerente ao facto de não se estar em contacto directo com as coisas. A realidade é menos colorida. Em qualquer esquina poderá surgir a oportunidade de se esbarrar com personagens que, existindo apenas no nosso imaginário, de repente se materializam. É como o desvanecer de um mito...
- Olha, ali vai Natália Correia, dizia o Rui.
O dia não tinha começado promissor. A assistência às primeiras provas orais era suficiente para, antecipadamente, perceber que as pétalas tenras e aveludadas iriam murchar. Agora desanuviava-se até chegar a hora H. Que não passou de uma oportunidade(?) perdida. A História foi um balbuciar desarticulado e intermitente. A Política... "pois... é uma pena, sabe?, a sua prova escrita está boa. Para ser claro, até foi a melhor, mas, com esta oral, não é possível"! Óbvio. Previsível... os sistemas políticos tinham sido uma trama mal urdida. Muito mal urdida. Fácil reconhecê-lo.
Aí está: tinha borrado a escrita. Acontece ao mais pintado. Como prémio de consolação tinha a possibilidade, que a passagem a Português permitia, de ainda poder repetir as específicas (História e Política) no ano seguinte, 1989. 
Agora, sozinha. No Rossio. Cinco da tarde. O Nicola estava de portas abertas, e Bocage pareceu encantado com a companhia de uma orquídea. De resto sua devota. O humor do poeta, ora sarcástico ora trágico-cómico, que fazia com que conseguisse sair airosamente da situação mais constrangedora, era um recurso deveras familiar...  Dava um ânimo novo. Até em casos angustiantes agravados por uma espera vazia. Saiu.
De imediato arranjou lugar na  jarra da Miquelina, o primeiro espaço que surgiu, no mesmo quarteirão, e lhe pareceu razoável. Seria a único? Provavelmente não, mas a escolha não era importante desde que tivesse um canto onde pudesse dar largas à onda de frustração que ia da raiz às pétalas.
Dali apanharia o metro directamente para o Campo Pequeno, na manhã seguinte. Ao Miguel deviam ter surgido outros compromissos, que isto de fazer prognósticos à distância, no tempo, regra geral é criar expectativas vãs. 
Ainda bem. O sentimento de angústia não gosta de companhia, prefere dar largas à dor sem testemunhas oculares. Mantê-la como segredo íntimo. Inconfessável cara-a-cara. Perante terceiros teria que representar um estado que não era o seu, conter a ira e adiar o desabafo.  Até decidir se estava no estádio pessimista de Schopenhauer ou no existencialista de Sartre. 
Em ambos condenada a sofrer, mas enquanto Schopenhauer a faria condenada por não encontrar sentido para a vida, Sartre dava-lhe liberdade total, sem escolha possível. Duas formas distintas de condenação unidas pelo sofrimento de ser condenada. Sentença inexorável - sem apelo nem agravo.  Invariavelmente, só Nietzsche tinha a solução para minimizá-lo: "a arte o mundo cria"! Faz esquecer... abre novos e mais amplos horizontes - em particular a literatura. É mais acessível. E a forma de comunicação por excelência. Para o comum dos mortais a escrita - o rabisco - é o recurso imediato.
Tinha sido dispensada de fazer, ao vivo e a cores, uma figura triste de idiota histérica, tentando abafar o nervosismo da derrota. Não obstante, ninguém a impediria duma manifestação escrita. Um recurso infalível para descarregar toda a ira indirectamente - o efeito seria dirimido entre o espaço que decorria entre a emissão e a recepção da mensagem postal. A massificação da Internet ainda demoraria uns anos. 
Escreveu e chorou. Era ver o Rossio feito vale de lágrimas, qual auto-de-fé do séc. XX. Chorou que nem uma Madalena. E escreveu o grito da raiva. Que logo de manhã se apressou a depositar no Correio mais próximo. Não fosse mudar de ideias sem que se sentisse vingada. Sim, claro, subconscientemente era também uma forma de retaliação ao receptor pela expectativa gorada: quando leres, a "tragédia" já terá passado, mas tu vais sentir o estrago!
Que isto não passaria, por certo, daquela "tempestade de copo de  água". Como escreveu Natália Correia: "Não há revolta no homem que se revolta calçado"!
 
Do Sentimento Trágico da Vida

 Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.

Natália Correia, in "Poemas (1955)"

BC/


(*) - Torre de Belém. Construída estrategicamente na margem norte do rio Tejo, entre 1514 e 1520, para defesa da barra de Lisboa, é uma das jóias da arquitectura do reinado de D. Manuel I.
No conjunto arquitectónico podemos separar dois corpos distintos, modelos da arquitectura militar: a torre de menagem medieval e o baluarte moderno que, com dois níveis para disparo de artilharia, permitia um tiro de maior alcance, rasante e em ricochete sobre a água.
A Torre de Belém é um referente cultural, um símbolo da especificidade do país que passa pelo diálogo privilegiado com outras culturas e civilizações. Guardiã da nossa Individualidade e Universalidade, viu este estatuto confirmado quando, em 1983, foi classificada pela UNESCO como "Património Cultural da Humanidade". 

(**) - Padrão dos Descobrimentos - O Monumento aos Descobrimentos, popularmente conhecido como Monumento aos Navegantes, localiza-se na freguesia de Belém. Em posição destacada na margem direita do rio Tejo, foi erguido para homenagear os elementos envolvidos no processo dos Descobrimentos portugueses. 
O monumento original foi encomendado pelo governo de António de Oliveira Salazar ao arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948) e ao escultor Leopoldo de Almeida (1898-1975), para a Exposição do Mundo Português (1940), e desmontado em 1958.  
O actual monumento é uma réplica erguida em betão, com esculturas em pedra de lioz, erguendo-se a 50 m de altura. Foi inaugurado em 1960, no contexto das comemorações dos quinhentos anos da morte do Infante D. Henrique, o Navegador. 

(***) - Ponte sobre o Tejo - A 6 de Agosto de 1966 era inaugurada a Ponte sobre o Tejo. 
A 5 de Novembro de 1962 iniciaram-se os trabalhos de construção. Menos de quatro anos após o início destes, ou seja, passados 45 meses, a ponte sobre o Tejo foi inaugurada (seis meses antes do prazo previsto). É uma ponte suspensa rodo-ferroviária que liga a cidade de Lisboa à cidade de Almada. A ponte atravessa o estuário do rio Tejo, sendo mais estreita na parte final — o designado gargalo do Tejo.
O tráfego ferroviário só foi possível depois da montagem de um novo tabuleiro, alguns metros abaixo do tabuleiro do trânsito rodoviário. A 30 de Julho de 1999 foi inaugurado este novo tipo de travessia.

Fonte: Wiki.