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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Bonequinha desvairada...


- Prepotente!

Era um recado para o parceiro do lado - o Diogo. Rabiscado na folha A4 que colhia os apontamentos da aula. Contabilidade Analítica: Sistemas de Custeio. Nem de propósito! O colega entendeu por bem provocar uma flor, marcando as suas pétalas com desenhinhos... bonequinhas desvairadas! Possivelmente inspiradas pela matéria. 
Pois! O senso comum intuiu, sabe-se lá porquê!, que bonecas, e ainda por cima desvairadas, frequentemente, ou por norma, são obra de largos custos. E há que destrinçar qual o sistema de custeio mais conveniente a adoptar. É! Há um mais apropriado do que outro. Conduz a resultados distintos. Daí que, contabilisticamente falando, não seja indiferente a escolha. O que não será de todo entendível é de que maneira esses custos são classificados... Seja como for, há quem diga que dão muito jeito e, ainda que camuflados, lá figuram nas contas de resultados. Ele há cada coisa! Esta gente sabe e é capaz de tudo para diminuir os lucros... 
A verdade é que, com efeito, mesmo desconsiderando os accionistas, ou os sócios ou até mesmo o investidor individual, há uma entidade suprema inevitável - o Estado - a quem não é nada conveniente apresentar resultados (muito) positivos... a Fiscalidade está sempre de olho! Necessariamente... porque eles comem tudo! Já por isso, rezam os cânones que os impostos são da mais elementar justiça. 
Não obstante, neste jardim à beira-mar plantado, quem concorda com isso? Equidade, utilidade, contrapartida directamente proporcional? Para que vos quero?! Razão pela qual as flores de tal jardim - aquele à beira-mar plantado -  são unânimes em discordar do pressuposto. Dizem que isso é bonito nos livros, mas utopia pura. Parece que a irracionalidade é que é rigorosamente proporcional aos cifrões. Pois!
Mesmo assim, lá temos de comparar o Deve e o Haver e, ao que sobra, aplicar a taxa. Deste modo, a Vida Económica/Boletim do Contribuinte, expedita, não deixou passar a oportunidade de negócio e  juntou-nos na Gonçalo Cristóvão, no intuito de "aprimorarmos" os nossos conhecimentos contabilísticos, via ao Exame de Aptidão para Técnico Oficial de Contas (TOC).  
"Aprimorar"? Grande favor! Orquídea tivera sido colhida, adolescente, num canteiro contabilizado pela primeira via. Rudimentar! Não sendo, propriamente, já a época do "Lovou" e "Trouxe", o Plano Oficial de Contabilidade (POC) ainda demoraria um par de anos a chegar, e ela só o tinha visto "por um canudo"!... Porém não tinha nada a perder e as oportunidades são para serem aproveitadas. Mesmo suspeitando que tinha chegado a hora de coleccionar derrotas, do mesmo modo que, até pouco tempo antes, havia coleccionado vitórias.  
É a vida, e ambas são necessárias. Valorizaremos muito mais o gosto doce das segundas, depois de termos sentido o sabor amargo das primeiras. Para além de que a mudança de ares seria salutar e o alargamento do conhecimento frutífero - não só o contabilístico... Previsivelmente, intervalos e pós-aulas seriam de alegre e são convívio, confraternização, entre-ajuda e, até, intercâmbio de produtos regionais - sempre podíamos trocar Alvarinho por Porto! E, efectivamente, únicos foram os sábados dos últimos meses do ano. Sim, da graça e da glória, de 1988! 
Encontro salutar de faixas etárias idênticas, unidas por interesses profissionais semelhantes e ainda pela utilidade mútua: o conhecimento detalhado da cidade do Porto, pelos "bon-vivants", servia na perfeição à curiosidade das "flores campestres" - a orquídea e a rosa, que entendeu por bem juntar o útil ao agradável. Da sua comparência, ou não, dependia a companhia masculina - individual (Diogo) ou ao par (Jaime e Tiago) e consequente local a visitar.
Dos cafés e pastéis, na Cunha, aos almoços self-service (e não só); da Twins à disco do Brasília (inclusive em dia de Tuna Académica de Coimbra), passando pelo Solar do Vinho do Porto, todos tiveram agenda. 
Houve, até, oportunidade de conhecer o "Sr. Neiva". Aquele com quem "gastava imenso latim", só a fazer encomendas de caixas plásticas (e depois moldes), empenhada como estava em que a matéria-prima, necessária à produção dos amplificadores de antena, fosse servida a preceito. De resto, a linguagem telefónica, mais ou menos rebuscada ou, talvez para ser mais exacta, um pouco elaborada - já lho havia feito notar - havia despertado certa curiosidade, sem a qual o instinto humano não seria a mesma coisa!
No entanto, um encontro fugaz foi suficiente para satisfazer a bisbilhotice. O tempo duma apresentação ligeira, à porta de saída das aulas, e a chegada do Ricardo, amigo e conterrâneo, que aproveitava a boleia, de fim-de-semana, para a terra. Repartia o tempo entre as vidas profissional na Telecom e académica - Direito - na Portucalense, dispersando-se pela "vida artística" (definição própria, dele), conforme podia.  
Aplicado o rapaz, mas o saturday night fever era sagrado e, desta feita, iríamos dançar, claro. Mais para norte, pela conveniência. Em último recurso haveria sempre o Viana Sol ou a Sereia da Gelfa. Já era mania! E obsessão! Banalidade incongruente... às vezes alternada com um leve ar marítimo e de sofisticação vindo do Luzia Mar. Ou do Ah Club, ali onde o rio acaba e o mar começa.
Mas isso foi naquele sábado, o do "Sr. Neiva". Porém,  neste sábado, a "prepotência" abriu caminho para o Solar do Vinho do Porto, bar estatal para a promoção do precioso néctar e de cuja carta de vinhos constam quase 200 vinhos do Porto diferentes, incluindo algumas raridades. Não estando os ditos disponíveis na totalidade, estão, no entanto, todos os produtores aí representados.  
  Sito na Quinta da Macieirinha, perto do Palácio de Cristal. Ambiente calmo e requintado, como convêm quando se quer impressionar os forasteiros com a melhor imagem da sua terra: imponentes jardins e vistas pitorescas sobre o Rio Douro, desde a zona das caves, em Gaia, até à sua Foz no Atlântico. Todavia, como "não há bela sem senão", devido a situação económica deficitária, o espaço está encerrado desde Janeiro de 2012. Para colmatar esta situação anómala e constrangente, fala-se de uma solução envolvendo um protocolo entre a Câmara e o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) que permita utilizar a designação de Vinho do Porto e clarificar regras de apoio ao funcionamento do Solar e, ao mesmo tempo, abrir um concurso de concessão e exploração do espaço a operadores privados, promovendo, assim, a sua reabertura e devolução à cidade, em prol do interesse público.


BC/




        

sábado, 3 de novembro de 2012

Rossio... vale de lágrimas!


A Isabel e o Rui chegaram animados. Com um sorriso rasgado e um cumprimento caloroso, receberam uma flor. O trio havia-se juntado de novo. Estava, agora, a admirar a paisagem acabado que era de chegar de um repasto apressado por ali perto. Do cimo de um espaço aberto do Palácio Burnay (ISCSP). Com vista para o Tejo. A Torre de Belém(*) por perto.

Torre de Belém


Ponte sobre o Tejo
Padrão dos Descobrimentos

O Padrão dos Descobrimentos(**). Mais ao longe a Ponte sobre o Tejo, hoje Ponte 25 de Abril, mas que já fora Ponte Salazar(***). 
É curioso, na capital perde-se aquele encanto misterioso do fascínio criado pela fantasia, inerente ao facto de não se estar em contacto directo com as coisas. A realidade é menos colorida. Em qualquer esquina poderá surgir a oportunidade de se esbarrar com personagens que, existindo apenas no nosso imaginário, de repente se materializam. É como o desvanecer de um mito...
- Olha, ali vai Natália Correia, dizia o Rui.
O dia não tinha começado promissor. A assistência às primeiras provas orais era suficiente para, antecipadamente, perceber que as pétalas tenras e aveludadas iriam murchar. Agora desanuviava-se até chegar a hora H. Que não passou de uma oportunidade(?) perdida. A História foi um balbuciar desarticulado e intermitente. A Política... "pois... é uma pena, sabe?, a sua prova escrita está boa. Para ser claro, até foi a melhor, mas, com esta oral, não é possível"! Óbvio. Previsível... os sistemas políticos tinham sido uma trama mal urdida. Muito mal urdida. Fácil reconhecê-lo.
Aí está: tinha borrado a escrita. Acontece ao mais pintado. Como prémio de consolação tinha a possibilidade, que a passagem a Português permitia, de ainda poder repetir as específicas (História e Política) no ano seguinte, 1989. 
Agora, sozinha. No Rossio. Cinco da tarde. O Nicola estava de portas abertas, e Bocage pareceu encantado com a companhia de uma orquídea. De resto sua devota. O humor do poeta, ora sarcástico ora trágico-cómico, que fazia com que conseguisse sair airosamente da situação mais constrangedora, era um recurso deveras familiar...  Dava um ânimo novo. Até em casos angustiantes agravados por uma espera vazia. Saiu.
De imediato arranjou lugar na  jarra da Miquelina, o primeiro espaço que surgiu, no mesmo quarteirão, e lhe pareceu razoável. Seria a único? Provavelmente não, mas a escolha não era importante desde que tivesse um canto onde pudesse dar largas à onda de frustração que ia da raiz às pétalas.
Dali apanharia o metro directamente para o Campo Pequeno, na manhã seguinte. Ao Miguel deviam ter surgido outros compromissos, que isto de fazer prognósticos à distância, no tempo, regra geral é criar expectativas vãs. 
Ainda bem. O sentimento de angústia não gosta de companhia, prefere dar largas à dor sem testemunhas oculares. Mantê-la como segredo íntimo. Inconfessável cara-a-cara. Perante terceiros teria que representar um estado que não era o seu, conter a ira e adiar o desabafo.  Até decidir se estava no estádio pessimista de Schopenhauer ou no existencialista de Sartre. 
Em ambos condenada a sofrer, mas enquanto Schopenhauer a faria condenada por não encontrar sentido para a vida, Sartre dava-lhe liberdade total, sem escolha possível. Duas formas distintas de condenação unidas pelo sofrimento de ser condenada. Sentença inexorável - sem apelo nem agravo.  Invariavelmente, só Nietzsche tinha a solução para minimizá-lo: "a arte o mundo cria"! Faz esquecer... abre novos e mais amplos horizontes - em particular a literatura. É mais acessível. E a forma de comunicação por excelência. Para o comum dos mortais a escrita - o rabisco - é o recurso imediato.
Tinha sido dispensada de fazer, ao vivo e a cores, uma figura triste de idiota histérica, tentando abafar o nervosismo da derrota. Não obstante, ninguém a impediria duma manifestação escrita. Um recurso infalível para descarregar toda a ira indirectamente - o efeito seria dirimido entre o espaço que decorria entre a emissão e a recepção da mensagem postal. A massificação da Internet ainda demoraria uns anos. 
Escreveu e chorou. Era ver o Rossio feito vale de lágrimas, qual auto-de-fé do séc. XX. Chorou que nem uma Madalena. E escreveu o grito da raiva. Que logo de manhã se apressou a depositar no Correio mais próximo. Não fosse mudar de ideias sem que se sentisse vingada. Sim, claro, subconscientemente era também uma forma de retaliação ao receptor pela expectativa gorada: quando leres, a "tragédia" já terá passado, mas tu vais sentir o estrago!
Que isto não passaria, por certo, daquela "tempestade de copo de  água". Como escreveu Natália Correia: "Não há revolta no homem que se revolta calçado"!
 
Do Sentimento Trágico da Vida

 Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.

Natália Correia, in "Poemas (1955)"

BC/


(*) - Torre de Belém. Construída estrategicamente na margem norte do rio Tejo, entre 1514 e 1520, para defesa da barra de Lisboa, é uma das jóias da arquitectura do reinado de D. Manuel I.
No conjunto arquitectónico podemos separar dois corpos distintos, modelos da arquitectura militar: a torre de menagem medieval e o baluarte moderno que, com dois níveis para disparo de artilharia, permitia um tiro de maior alcance, rasante e em ricochete sobre a água.
A Torre de Belém é um referente cultural, um símbolo da especificidade do país que passa pelo diálogo privilegiado com outras culturas e civilizações. Guardiã da nossa Individualidade e Universalidade, viu este estatuto confirmado quando, em 1983, foi classificada pela UNESCO como "Património Cultural da Humanidade". 

(**) - Padrão dos Descobrimentos - O Monumento aos Descobrimentos, popularmente conhecido como Monumento aos Navegantes, localiza-se na freguesia de Belém. Em posição destacada na margem direita do rio Tejo, foi erguido para homenagear os elementos envolvidos no processo dos Descobrimentos portugueses. 
O monumento original foi encomendado pelo governo de António de Oliveira Salazar ao arquitecto Cottinelli Telmo (1897-1948) e ao escultor Leopoldo de Almeida (1898-1975), para a Exposição do Mundo Português (1940), e desmontado em 1958.  
O actual monumento é uma réplica erguida em betão, com esculturas em pedra de lioz, erguendo-se a 50 m de altura. Foi inaugurado em 1960, no contexto das comemorações dos quinhentos anos da morte do Infante D. Henrique, o Navegador. 

(***) - Ponte sobre o Tejo - A 6 de Agosto de 1966 era inaugurada a Ponte sobre o Tejo. 
A 5 de Novembro de 1962 iniciaram-se os trabalhos de construção. Menos de quatro anos após o início destes, ou seja, passados 45 meses, a ponte sobre o Tejo foi inaugurada (seis meses antes do prazo previsto). É uma ponte suspensa rodo-ferroviária que liga a cidade de Lisboa à cidade de Almada. A ponte atravessa o estuário do rio Tejo, sendo mais estreita na parte final — o designado gargalo do Tejo.
O tráfego ferroviário só foi possível depois da montagem de um novo tabuleiro, alguns metros abaixo do tabuleiro do trânsito rodoviário. A 30 de Julho de 1999 foi inaugurado este novo tipo de travessia.

Fonte: Wiki.




segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Do Palácio Burnay ao Nicola...


- Rui, havias de ver, quem havia de dizer que sou uma flor de história feita?! Dentro do que perguntavam, andei pelo que tinha uma ideia e inventei aquilo que me parecia que, se não aconteceu, deveria ter acontecido. No bloco optativo, fui pelos Descobrimentos Portugueses. 

Painéis de S. Vicente de Fora - Nuno Gonçalves
Aí, como não seja assaltada por uma "branca monumental", na hora do aperto sempre sai alguma coisa, mas tudo muito superficial!... E cá política... de blocos? Ah, blocos é comigo! E se forem de gelo - como é o caso - vou-te contar... não há quem me pare! Resvala-se aí que é uma maravilha... estendo-me a todo o comprimento. Impávida e serena. Seguríssima.
De facto, é nos blocos (de gelo) onde estou (e estive) mais à vontade. Que isto de russos e americanos é como gregos e troianos. A diferença é que, enquanto os últimos foram à luta movidos por uma romântica história de amor, aos primeiros só o interesse económico e bélico os movia. E em se tratando de economia e logística, a orquídea tem um sentido analítico e metódico muito apurado. Talvez não pareça, pelo seu toque suave e aveludado, mas isso é só à superfície. Bem... até ver nunca é tarde. Como, mal ou bem, fizemos, por norma, não somos excluídos da oral. 
Que não se fez esperar. E uma oral sempre foi a fogueira. Ou não! Exceptuavam-se os casos raros, como raríssimas as orais efectuadas, em que a habilidade, nascida da curiosidade genuína por saber mais, tinha o dom de inverter as funções: punha o examinando a responder às perguntas da examinada. Examinando, claro, masculino. Examinanda tinha um crachá: BARREIRA!
Uma incógnita era um duo de examinandos misto. Feminino para a História, masculino para a Política. E ainda havia muito a excluir. De um vasto jardim inicial, que a Língua Portuguesa tinha mondado até ao nível mais alto, restava um canteiro. Pequeno. Mesmo assim sabíamos que as suas dimensões seriam ainda mais, muito mais, reduzidas. Na terra prometida haveria lugar só para mais dois (ou três?) exemplares. 
Uma vantagem de ter um nome começado por uma  letra constante para lá de metade do alfabeto é ser das últimas a ser chamada nas provas orais e, assim, ter a oportunidade de assistir às prestações anteriores. Dá um certo à vontade e familiaridade com o ambiente. Implicava, porém, no caso, ter de passar a noite em Lisboa. 
Banhistas na Margem de Um Rio - Henri Matisse
A não ser que o Miguel aparecesse - uma promessa vaga feita a vários dias de vista. 
Conhecemo-nos na Heart Rock. Festejava-se a Revolução dos Cravos na disco-night. Com uns dias de antecipação para coincidir com o fim de semana. O som era do satânico Nick Cave. A parede do palco servia de tela para a exibição da pintura de Matisse, alternada com o design da Bauhaus. Do andar superior alguns presentes, (ainda) alheios à pista de dança, assistiam a esta projecção. 
Aí estava, também, uma orquídea - azul, nessa noite - tão resistente como o conjunto jeans, Absinto, deslavado, que envergava. Dois palmos de saia unidos por um éclair, estrategicamente posicionado na dianteira, diagonalmente, a todo o reduzido comprimento, de cima a baixo, não corrido completamente para que permitisse dar passos de gente, à medida da perna. Um blusão/top, de manga comprida e trespasse. Fechado, também, por um éclair no ombro esquerdo e quatro botões metálicos com uma lira em relevo: dois na cinta e dois nos ombros. Ambas as peças, saia e blusão, debruadas no topo com crepe de seda, quadriculado e trincado. Cinto preto a pender, a toda a largura da anca: duas tiras, três quartos abertas em tiras mais estreitas e um quarto cravejado de esmeraldas e rubis (pois, bijouterie), unidas ao centro por um hexágono de bolinhas douradas. Fechavam, atrás, com uma fivela. Scarpins pretos, Italus, tacão latino (2-3 cm de altura) e bolsa/saco preta de franjas. Atenta. Procurando o melhor ângulo de visão que um cavalheiro solícito, gentilmente lhe cedeu à sua frente, não perdendo a oportunidade de entabular conversa. Valeu-lhe a mini-saia que, por norma não combina com tacões (altos) - sente-se meia garça - não ficando, assim, mais alta do que ele. 
Caiu bem - o terreno andava a tender p'ro árido a nível de cabeças pensantes. Depressa descobrimos várias amizades comuns. Pontos e caminhos que se cruzavam: na electrónica e na política, designadamente. Não que a orquídea percebesse alguma coisa de ondas hertzianas ou fosse fanática da social-democracia. Contudo, por força das circunstâncias profissionais, estava embrenhada no ramo eléctrico-electrónico; a social-democracia, de então, tinha sido uma resposta natural aos radicalismos pós-25 de Abril. Ele andava a preterir os condensadores, as resistências e os cabos eléctricos, os transistores e os circuitos integrados, pelas reuniões e manifestações partidárias. A engenharia electrotécnica pela política local - limiana - e o cargo de Delegado Regional do Instituto Português da Juventude (IPJ). 
Daí as idas e vindas aos centros de decisão política da capital serem constantes, para além, talvez, de serem facilitadas pelo paladar aguçado desses meios. Aliás, está demonstrado o seu bom gosto. Quiçá não em tudo, claro, mas, pelo menos, no que a queijo flamengo diz respeito - a bolinha vermelha, nascida em 1959. O Limiano! Excelente. Sabor suave e textura amanteigada. Produto gourmet que veio para ficar. De tal forma que, na capital, viria até a servir para voltar aos tempos ancestrais da troca directa... 
De qualquer maneira, nesse dia, muito provavelmente, haveria coincidência de agenda. Regressaria ao Minho com a companhia de uma flor. 
Nicola-Pr. D. pedro IV(Rossio) - Lisboa

- Passas no Nicola ao fim da tarde. Se não houver impedimento, lá estarei.
Estátua de Bocage-Nicola/Escultura de Marcelino de Almeida
Passaria, claro, não tinha nada a perder por enfeitar uma mesa, durante uma meia hora, na companhia de Bocage, seu habitué de outrora e agora, artisticamente, residente. Que melhor companhia poderia desejar?!
O Café Nicola, sendo um dos estabelecimentos mais antigos e mais frequentados da Lisboa de finais do séc. XVIII - fundado no Rossio, em 1787, pelo italiano Nicola Breteiro -, já foi ponto de encontro, de partida e de chegada de movimentos socio-culturais e políticos. Como local de debate literário por excelência, teve por  frequentador mais ilustre  Manuel Maria Barbosa du Bocage(*).
Conta-se, até, que um dia, em frente ao Nicola, Bocage foi interpelado por um polícia que lhe perguntou quem era, donde vinha e para onde ia. O poeta a quem, porventura, a boémia e a aventura tinham feito satírico e espirituoso, não se escusou a prontamente responder:
"Eu sou Bocage
Venho do Nicola 
Vou p'ro outro mundo
Se dispara a pistola".

Quadro de Fernando Santos - Café Nicola

 Auto-retrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
 

- Bocage




BC/

(*) - Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 - Lisboa, 21 de Dezembro de 1805). Poeta, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do séc. XIX. (Wiki)




sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Uma miragem...


- Isabel! Bom dia! Já sabia que cá estarias... tu e o Rui. Estás preparada? Eu vou mostrar aquilo que valho! Assim mesmo. Com todas as letras. 
Era uma leve esperança de que os conhecimentos de História e Política fossem compatíveis com o denso programa apresentado: uma selva! Talvez porque uma boa parte do nosso passado, assim como do presente, histórico-político não seja, exactamente, um conto de fadas. O nosso: Humanidade, claro. Que este rectângulo pequenino tem tido, ao longo dos séculos, os seus desvarios, mas nem por isso tem pecado por originalidade. Não, nesse campo não! É uma fartura... não foram os feitos, a que sempre damos maior relevância, e sentir-nos-íamos presos numa teia.
A globalização... só a palavra é que é de agora. De resto desde que os portugueses circum-navegaram a Terra ninguém mais soube de que terra era. Pois, pelo menos isso gravei, há muito: fomos importantes. Deixamos marca, enfim, fizemos história que, entre outras (histórias), consta nos livros que se foram acumulando - livros e livros... Seria desta que uma flor com história iria carregar com a História. Era uma promessa. Não! Promessa era demasiado comprometedor. Talvez, mais uma ameaça...
Isso! Uma olhadela de soslaio para o monte... umas vezes mira-se títulos e figuras, outras lá ficam abertos, incumbidos da tarefa de estudar sozinhos... e ao fim - típico - num abrir e fechar de pétalas, esfolheia-se tudo, da raiz à corola, dá-se um pouco mais de atenção à raiz, e zás!, o que tiver de ser tem muita força!
De Março a Junho... dois meses e meio! Tarefa hercúlea, mas manda a justiça que se diga que este tipo de orquídeas sobressaem mais em situações de stress e entregues a si próprias. Sem tempo. Agora e já! Portanto, num caso destes... está à vista: fé no "expertise" do momento e está no ir.
Embora não se convencesse... Não acreditava em milagres e até Santo António, este ano, de 1988, não andava nada casamenteiro por aquelas bandas. Não obstante, nem que fosse só a oportunidade de ver e pisar a escadaria daquele palácio e, ainda por cima, por uma causa tão nobre, tudo valia a pena.
Palácio Burnay
O Palácio Burnay(*), ali, em Alcântara com cheiro a mar, é um exemplar, escasso, do modelo de residência da alta burguesia urbana de Lisboa, do começo do séc. XIX. Para além de ter sido, também, residência oficial de Verão do Patriarcado de Lisboa. Daí Palácio dos Patriarcas ser uma segunda designação pela qual o imóvel é conhecido.
Subir a sua escadaria principal era voar nas asas do sonho. Um sonho de uma flor de braços abertos para o mundo académico. O céu! 
Mas para lá chegar... caminhos intransitáveis, vielas estreitas. Corredores muito apertados. Um sonho que viu escapar-se-lhe desde o primeiro dia em que percorreu os escassos trezentos metros que separavam o seu canteiro de um jardim florido. Palmilhou-os tímida, mas segura. Com a alegria incontida e a agilidade própria dos seis anos. 
Abriram-lhe as portas do paraíso. Por quatro dias! Quatro dias de sonho. E a flor murchou? Não! Foi um pequeno lapso de tempo, mas inebriante. Valeu por uma vida - era o que de mais extraordinário lhe poderiam oferecer. Não perdeu o viço nem a frescura. Cortaram-na! Precisaram do lugar para cultivar uma espécie vinda do outro lado do Atlântico. Nascida de semente lusófona, e flor em fase de criação um pouco mais avançada do que uma orquídea prestes, ainda, a desabrochar. Tinha que esperar mais um ano até à próxima lavra. Era de lei. Desabou o mundo. O seu mundo! De tal maneira que a recordação, a primeira, ficou guardada. Indelével e ciosamente.
Palácio Burnay
E agora aquela escadaria... Uma miragem. Decorada com motivos trompe l'oeil, com a finalidade de criar, nada mais nada menos, do que uma ilusão óptica. Uma observação de relance deixa a percepção de que se está perante um objecto real tridimensional e não bidimensional, como de facto é. A técnica aplicada baseia-se em pormenores realistas que combinados com uma perspectiva do claro/escuro dão uma nítida impressão de profundidade. Perto e longe. De menos a mais infinito. Apenas com truques de perspectiva o pequeno se transforma no imenso. Em tudo condizia com a situação.
 
Palácio Burnay


 
BC/




(*) - "A vida do 1.º conde de Burnay oferece aspectos curiosíssimos pela intensidade com que delineou e executou as mais imprevistas operações e especulações financeiras, bolsistas e bancárias, contando sempre êxitos rotundos e dando origem a uma das casas mais ricas de Portugal (...). Ao mesmo tempo, caso curioso, era exímio bandarilheiro amador. Também ficou, como obra notável sua, o início da reunião de colecções de arte, galeria de quadros, etc. que povoavam os sumptuosos salões do seu palácio da Junqueira, conjunto desmembrado, por partilhas familiares, em 1937, em venda pública". (conforme trecho da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).
O Palácio de Burnay foi mandado erigir por D. César de Menezes, tendo as obras decorrido entre 1701 e 1734. O Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR) classificou este palácio como Imóvel de Interesse Público. Durante várias décadas, nele esteve instalado o Instituto de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), unidade orgânica da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), agora transferido para o Pólo Universitário do Alto da Ajuda da UTL. Em sua substituição funcionam aí os Serviços de Reitoria e Acção Social da UTL, além do Instituto de Investigação Científica Tropical.
Actualmente está prevista a fusão da UTL com a UL (Universidade de Lisboa), denominada "Nova Universidade de Lisboa", passando o ISCSP, para a sua tutela, já a partir de Janeiro de 2013. (Wiki)